top of page

Tradição e sexualidade - Por Vagner Oliveira

Aproveitando o encerramento do mês dos festejos Farroupilha vamos falar um pouco das nossas tradições e da quebra de paradigmas. Me lembro que com 7 anos quando morava no interior com minha família, uma cidade muito pequena, onde haviam poucas atividades para as crianças, a Patronagem do CTG (Centro de Tradições Gaúchas) procurou minha família e convidou para participarmos, eu e minha irmã, da invernada artística.


Google Imagens

De imediato meus pais aceitaram, pois, o CTG foi sempre foi visto como um lugar sadio e de respeito, e dali criou-se um grande elo, se tornando minha segunda casa, entre idas e vindas dancei 12 anos no CTG Tropilhas da Serra.


Nesse meio tempo acabei participando de diversos setores de patronagens, acabando por me tornar em 2008 o Patrão de CTG mais jovem do Estado, numa cidade onde nunca alguém tão jovem havia presidido aquele CTG. Me tornei devido várias insatisfações minhas e de pessoas conhecidas, juntei uma equipe com muita vontade e fizemos a diferença, o que me orgulha muito.

Em 2009 acabei assumindo minha sexualidade, não que antes não fosse notória, sendo ainda Patrão nesta época, os rumores foram tantos, mas quis mostrar que apesar da minha sexualidade, minha tradição e amor pelo CTG continuava o mesmo.


Todos os anos participo da Semana Farroupilha da minha cidade, já organizei concursos de prendas depois de ser Patrão, fui jurado, declamador, posteiro da invernada... e amo as nossas tradições.


Mas essa vivência no meio tradicionalista nem sempre é assim, apesar de eu não entender, pois ser homossexual não faz de mim menos Gaúcho ou mais Gaúcho. E aos poucos assim como avançamos em diversas áreas, acho que a tradição não tem que evoluir no sentido de ser modificada, até porque existe toda uma forte questão histórica, mas deve respeitar pessoas que fazem parte dela e continuar sendo esse meio sadio, que não exclui seus membros. Aliás, por mais conservador, machista e repressivo que possa ser o tradicionalismo, continuam os gays fazendo parte do Movimento.


Vagner Oliveira e Felipe Saraiva
Eu e Felipe, meu noivo, durante o Acampamento Farroupilha 2018.


Me lembro de dois casos bem polêmicos, em 2014, em aproximação da semana farroupilha, a Juíza Carine Labres, diretora do Foro de Santana do Livramento, sugeriu que fosse realizada uma cerimônia de casamento entre 28 casais heterossexuais e 2 homoafetivos no CTG Sentinela do Planalto, instalado na mesma cidade. O evento foi autorizado pelo patrão do CTG, o advogado e vereador Gilbert Gisler.


A aprovação por parte do dirigente do CTG recebeu muita crítica da comunidade tradicionalista e o local acabou sendo incendiado poucos dias antes da comemoração, com recebimento de uma carta de ameaça. Um dos casais, por medo de reações homofóbicas, desistiu do casamento. A Polícia Civil investigou o acontecido e não descarta que o incêndio tenha sido gerado propositalmente.


O incêndio não foi suficiente para impedir a cerimônia de acontecer, no mesmo dia inicialmente planejado, no Fórum de Santana do Livramento. As jovens Solange e Sabriny foram o primeiro dentre os vários casais presentes a dizer “sim” para o juiz de paz.


No ano posterior em 2015, apresentei o IV Fórum Nacional das Comissões de Diversidade Sexual da OAB em Canela e lá estava a Juíza Carine que com suas palavras me emocionou e mais uma vez confirmou que existem pessoas que pensam como nós.


Também em 2015 um noivado silencioso aconteceu no fim de semana durante o Encontro de Artes e Tradição Gaúcha, o Enart, em Santa Cruz do Sul. Dois peões integrantes da invernada de danças da União Gaúcha Simões Lopes Neto, de Pelotas decidiram firmar promessa de casamento, com troca de alianças e tudo. Em postagem numa rede social, o bacharel em direito Henrique Vargas Guimarães dos Santos, 22 anos, de Alegrete, conta que foi surpreendido com o pedido, momentos antes de entrar no tablado para dançar. "Eis que no brete, uma criatura me pergunta: quer casar comigo?", escreveu.


A resposta ao companheiro Diogo Coelho Moreira, 26, bancário, foi sim. Ele diz que ambos namoravam gurias antes de se descobrirem gays. No final de 2013, surgiram boatos de que era homossexual. "Ele é ou, não é?", lembra o dançarino, que afirma nunca ter sido tratado com preconceito. Henrique, que antes de dançar no CTG de Pelotas fazia parte de uma entidade de Alegrete, também diz que não era discriminado, porém em matérias e redes sociais os comentários eram os piores possíveis, dizendo que no tradicionalismo isso deveria ser impedido de acontecer, que o patrão deveria ser responsabilizado, que estavam envergonhando os tradicionalistas...


Enquanto as leis brasileiras avançam, aos poucos, mas admiravelmente, na direção da igualdade de gêneros no Brasil, algumas instituições ainda prezam por um tradicionalismo enferrujado e retrógrado. É o caso da tradição gaúcha.


O CTG não é uma mera instituição privada, como escreve David Coimbra, colunista gaúcho. Ele é um movimento que reivindica um passado, uma identidade e um projeto de sociedade no qual toda sociedade gaúcha está implicada. Eles se colocam como representantes legítimos da preservação daquilo que é “ser gaúcho”, e, como tal, apropriam para si a representação pública de toda sociedade gaúcha. Eles acreditam, portanto, ter o direito de definir o que é ou não é “ser gaúcho” e encontram uma certa “legitimidade” junto aos meios de comunicação e estâncias do Estado, como a Secretaria da Cultura e projetos relacionados.


Cabe aqui então questionar: “o que é ser gaúcho?”. Para quem nasceu e viveu no Rio Grande do Sul, uma resposta pronta surge à mente, mas o desafio a ser feito é revalidar essa imagem criada pelo movimento. Se fosse para visualizar um vaqueiro que trabalhava nos pampas gaúchos em pleno século XIX, a primeira imagem que surge é um homem bigodudo, branco, botas de couro, lenço vermelho e montado em seu cavalo.


Essa visão está deturpada, ou, ao menos, estatisticamente mal representada. Durante o século XIX, em média 30% da população Rio Grandense era formada por cativos, sem falar em negros libertos e mestiços. O Rio Grande do Sul foi a terceira província brasileira em números relativos de cativos, perdendo apenas para Rio de Janeiro e Espírito Santo. Apesar disso, pensamos o Rio Grande do Sul como um Estado “branco” se comparado com outras regiões do Brasil. Além disso, o índio é esquecido em um passado guerreiro romantizado e excluído da assim chamada “civilização” Rio Grandense. Falamos com orgulho das tradições açorianas, portuguesas e a importação das tradições dos imigrantes europeus de diversas nacionalidades, mas o negro tem pouco a contribuir para a “Tradição” gaúcha. Por quê?


É simples: assim como o chimarrão, a escravidão também foi uma tradição gaúcha. Foi por mais tempo, até, que a bombacha. A bombacha só virou vestuário típico após a Guerra da Crimeia já no final do século XIX. Já a escravidão sempre esteve presente, mesmo com a abolição em nossos vizinhos. Nossos “heróis” Farroupilha eram senhores de escravos. Entretanto, curiosamente o CTG não reivindica esse passado, nem com escravos nem com senhores de escravos. Os negros foram simplesmente “lavados” da história do Rio Grande. O episódio dos “lanceiros negros” é raramente lembrado pela História Pública, pouco conhecido. Por quê? Porque a tradição gaúcha foi inventada, assim como qualquer tradição.


Em toda prática de memória há lembrança e esquecimento. Os negros, assim como índios Caingangues, mulheres, gays, descendentes de espanhóis e muitos outros, foram arbitrariamente esquecidos. Afirma-se então que “essas coisas de gay” não têm nada a ver com a tradição gaúcha. Que ser gaúcho é “ter hombridade” ou qualquer coisa parecida. Bom, admite-se então que a tal “Tradição” é deliberadamente homofóbica e heteronormativa. E, para falar a verdade, de fato é. Infelizmente, então, o racismo, o machismo e a homofobia são partes integrantes da tradição gaúcha que dela deveriam ser excluídas, da mesma forma que a escravidão foi.

É estranho que exista um certo “orgulho de ser gaúcho” que gera até algumas piadas bairristas no Estado. Eu mesmo sinto essa espécie de orgulho mal justificado, que entendo ser bastante comum entre os moradores do RS. No entanto, orgulho e tradição não deveriam jamais obstaculizar o progresso na direção da igualdade.


Ademais, já vivi em outros Estados e o fato de ser gaúcho já associam a ser gay, o que estranha muito, pois somos um dos Estados mais preconceituosos do País e que mais agride LGBTs do País, ao mesmo tempo são daqui que saem as primeiras decisões em direito homoafetivo, o que me conforta.


“Mas tchê!! Pra que o entrevero?! Deixa o gaúcho da fronteira cuidar do pago dele!!”. Talvez se argumente que CTG não é lugar para reivindicações sociais, para polêmicas. Ora, se o Movimento Tradicionalista Gaúcho compreende entre seus próprios preceitos básicos, incluídos na sua carta de princípios, o objetivo de “IX – Lutar pelos direitos humanos de Liberdade, Igualdade e Humanidade”, não seria o sediamento do casamento gay uma ótima chance de honrar suas próprias diretrizes? Mais que uma luta, uma reivindicação social ou polêmica, não seria o casamento gay apenas uma aplicação do princípio de Igualdade tão solenemente defendido na carta de princípios do MTG? Sugerir ao tradicionalista que ele seja tolerante não é tentar forçar uma nova ideologia nele, é lembrá-lo de seu próprio código de honra. Afinal, a controvérsia não foi gerada graças aos outros vinte e tantos casais “tradicionais”, mas sim contra o único casal homoafetivo presente.


David Coimbra escreveu, na mesma linha do raciocínio anterior: “As tradições são até anacrônicas, porque não são mais desse tempo, são de outro, de um tempo que não existe mais. Só que há quem goste disso. (…) Por que, então, casar-se nesse lugar? Para quê? (…) Deixem os tradicionais com suas tradições, mesmo que sejam antiquadas. Eles gostam!”.


O que foge ao texto é a sensibilidade em entender que não se trata de um grupo qualquer, trata-se de uma minoria que é afligida de inúmeras formas na sociedade, desde a segurança no dia a dia até as enormes barreiras na vida profissional. Por que um lugar a menos para manifestar a igualdade de gênero, se o gaúcho dito tradicional poderia honrar seu código de ética e fornecer um lugar a mais a uma população já amplamente privada de liberdade? A linha de raciocínio é hipócrita e não muito diferente de “pode ser gay, eu aprovo 100%, mas não pode ser onde eu consiga ver, não pode ser em qualquer lugar”. Que tipo de igualdade é essa? Além disso, é bom relembrar que o patrão e dirigente do local havia previamente aprovado o casamento, e não é como se o evento estivesse sendo realizado a contragosto da administração do local.


Como cantou Jayme Caetano Braun, “tenho visto coisa feia, tenho visto judiaria”, mas coisa feia mesmo é preconceito coberto com botas, bombacha e lenço e sendo chamado de tradição. Preconceito é preconceito, não importa o quanto seja embelezado, e o “orgulho de ser gaúcho” seria muito mais honrável sem ele. Que o machismo, o racismo e a homofobia sejam, então, subtraídos da nossa cultura, já que, como disse o patrão a Florêncio: “quem já não serve pra nada, não merece andar no mundo”.

Vagner Oliveira

Advogado

Especialista em Direito Homoafetivo

Pós-Graduado em Processo Civil

Comments


bottom of page