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Pelo Vale do tempo

Por Luís Pissaia



Os vincos dos olhos acentuam-se durante os invernos do Vale. Ventos, enchentes e neblina levam as estações e os anos de vida. O Taquari, como um vaso sanguíneo abastece as lavouras e as cidades, trazendo vitalidade e oxigenação para o cérebro.  


Hoje não reconheço a pele na qual habito, o tempo, grande mandatário da vida agride duramente a veste. A pele enruga, a força diminui e a sabedoria aumenta. Há quem diga, até mesmo pensadores, que o tempo é um vilão. Contudo, o tempo é algo que não existe sem o ser. O feto de semanas no útero gerador está em processo de envelhecimento, o corpo que cede e transforma a vida das coisas.  


“Coisas”, uma bela descrição de tudo aquilo que nos cerca. Todos lutam contra o tempo. No momento que escrevo, estas palavras fazem parte de pensamentos nunca mais repetíveis, o ser nunca é repetível. O rio avança, preenche os campos e retorna para as margens, mas nunca a mesma gota retorna para o mesmo logradouro. O rio nunca é o mesmo, eu também nunca serei.  


O Vale do Taquari muda, as suas cidades envelhecem, pessoas se vão e outras chegam, impérios erguem-se e desmoronam. Na vida somos passageiros, na janela de trens que retomam o seu trilho depois de anos abandonados. Ainda existem cemitérios de trens, mas alguns ganham vida, cantoria e cor dentre as montanhas, agora com o Cristo Protetor. Se a memória fosse eterna, transmitida de geração em geração, lembrar-nos-íamos dos primeiros, talvez dos indígenas que colhiam pinhão ao longo das montanhas, daqueles pioneiros que mascaram a folha da erva-mate ou das mulheres que sentadas ao longo do Forqueta produziam cerâmicas.

 

Os mistérios de penhascos e cachoeiras desbravados por imigrantes que na busca por um recomeço fizeram destas terras um novo lar. O novo mundo para os açorianos ofereceu a oportunidade de criar algumas das mais antigas cidades, preservando a dança e o amor pela culinária vinda do além mar. Os alemães e italianos não tardaram, com força e ideais de cooperativismo abriram espaço dentre as matas para a criação de comunidades, recantos que até então representam a memória de terras antigas, mundos perdidos pela guerra e pobreza.

  

A memória, a vida diluída em cenas armazenadas no cérebro, o cerne do ser. Perderemos as mãos e os braços, mas continuaremos com a memória. O tempo corrói a mais fina porcelana e leva as memórias que antepassados nos deixaram. Meus bisavôs, vindos da Itália, ajudaram na construção dos Vales, observaram com os seus olhos a construção de uma região recém-colonizada. Avô Nelson presenciou o rompimento do lago da hidroelétrica de Putinga/RS em 1953, um dilúvio que destruiu casas e bens materiais de toda a comunidade. A memória dele é a minha, por meio da transmissão das memórias. Da mesma forma que os avós dele vivenciaram a queda de um meteorito durante a festa de São Roque em 1937 na mesma cidade. Quando convivemos, as histórias são contadas, a vida se perpetua por meio da sabedoria adquirida com a vida.  


O Vale prospera, indústrias e a agricultura movimentam os negócios. Lar de grandes cooperativas que unem pessoas sob um único prisma, o de colaborar para o bem-estar coletivo. A mesma união levantou as pedras de igrejas e mosteiros, templos de fé para as diferentes manifestações aqui abrigadas, afinal somos diversos. A diversidade dos povos é celebrada em centros de ensino com raízes no Vale, e hoje as escolas e universidades formam cidadãos.  


Enquanto isso, o rio corre, arrasta consigo as pedras, abre poços e fica represado em barragens, ele é fluído, escapa pelas frestas e se torna persuasivo quando necessário. O tempo assombra o Vale do Taquari, em um estado em que o número de idosos ultrapassa o de jovens, problemas sociais são previstos. E como não ficar preocupado com os nossos idosos? 


Hoje, a minha imagem no espelho lembra a passagem do tempo, de que padeço a cada minuto. Percebo que a cada dia esqueço-me de lugares, pessoas e cenas vividas. Isso é o grande dilema da vida. Até quando as memórias continuarão a alimentar as conexões neurais? Resposta complicada, pois depende de inúmeros fatores. O que desejo é chegar aos 90 anos em pleno domínio da razão.  


O envelhecer nos acompanha desde a concepção. À medida que o Vale entra no século XXI, os tempos mudam. Crises colocam a prova os ideais, novos modelos de negócio substituem o trabalho braçal, a vida acontece de uma forma diferente daquela que meus bisavós pensaram no século XIX. Teimo em escrever com algarismos romanos.  


Como abrir portas para o novo mundo, sem esquecer-se do antigo? O rio Taquari nunca volta, os desejos nele jogados são levados pelo inexorável movimento das águas. Mesmo assim, ele espelha a resposta. Virtuoso e fonte de vida, o rio nunca perde a identidade de rio, em essência, sempre será água e por isso ele não é perene e sim permanente nas épocas. O Vale do Taquari existe com pessoas e que na essência são humanas, é a humanidade que nos torna permanentes. Eu fico na memória, nos feitos, na construção, bem como os antigos estão comigo. 

 

Os vincos dos olhos observam o mundo através de uma tela. O líquido do rio transborda para o tempo. A impermanência é complexa. O medo de desaparecer sem deixar rastros é compartilhado por todos os seres. Em um Vale extenso, quantas vidas podem fazer a diferença? Todas! Todas as vidas constroem histórias pelo simples fato de estarem aqui e agora. Aos entusiastas, a vida plena apresenta uma possibilidade de viver um maior número de momentos, exercitando o corpo e a mente, servindo a mesa com parcimônia e acolhendo o novo.  


Agora, 2023 completamos os primeiros vinte anos do Estatuto do Idoso. Momento impar de partilha sobre os diretos e deveres dos idosos, bem como a construção de um pacto sobre um Vale respeitoso com a população idosa.  


Somos do Vale do Taquari, um berço construído com o suor de muitos e embelezado com dons humanos. Pensar na subsistência do Vale é respeitar a sabedoria que vêm com os anos, é aceitar o declínio fisiológico e a necessidade de viver na sua própria época. Idoso com espirito jovem não existe, é maldoso encaixarmos a faixa etária em determinadas capacidades. O idoso é ele próprio, indivíduo e individual em sua essência. Torço por um dia em que a neblina leve os preconceitos do nosso povo.  


A vida é muito e pouco, a ambiguidade de viver é transmitir para o futuro. O legado do Vale é ser humano, é permanecer na memória, é ser tempo na vida das pessoas. 




Sobre o autor - *Enf. Me. Luís Felipe Pissaia  - COREN/RS 498541

Mestre e Doutorando em Ensino

Especialista em Gestão e Auditoria em Serviços da Saúde

Docente Universidade do Vale do Taquari - Univates 

Enfermeiro de Rel. Empresariais - Marketing e Relacionamento Unimed VTRP

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